“O flagelo não está à
altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que
vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os
homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas
precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se
esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o
que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios,
preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que
suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca
alguém será livre enquanto houver flagelos.”
(A peste – Albert Camus)
Existem pessoas que são
invisíveis, mas indispensáveis. Têm outras que não fazem o menor esforço para
serem imprestáveis e irrelevantes. Eu prefiro me colocar no primeiro grupo, mas
com uma característica a mais, eu sou um exímio observador.
Apesar de ser invisível perante
uma grande parcela da população, me sinto indispensável no que diz respeito à
profissão que exerço e à arte que exprimo. Mas além disso, me sinto um exímio
observador que de fora assiste a toda essa gente que ronda por aí. Quem gostar
e entender dessas questões de escolas filosóficas que lute para me aprender e
me encaixar em alguma delas.
Não sei se seria cínico ao ponto
de abandonar tudo para viver num barril ou talvez um epicurista que só busca o
bel-prazer e elimina qualquer vestígio de dor. Quem sabe eu seja um estoico e
acredite que na verdade eu sou uma pecinha habitando nesse universo e ao mesmo
tempo tenho todo esse universo habitando em mim ou até mesmo eu seja um
romântico que apenas aproveita a vida em seus devaneios e vãs filosofias.
Talvez eu seja um humanista que crê que tudo só dará certo se nossa espécie
humana for capaz de conseguir superar todos os problemas, ou melhor, posso ser
um existencialista, sentado numa mesa de café, lendo o meu jornal do dia e apenas
filosofando sobre a existência e a condição sombrias de nós seres humanos. No
fim eu não sei o que sou, prefiro ficar com aquele filósofo mais famoso que
dizia: “Só sei que nada sei!”.
Só sei que continuo sendo humano
demais, divino de menos. Humano, demasiado humano. Um humano que observa de
fora todos os outros perambularem com os seus constantes desejos instantâneos e
com os seus medos momentâneos.
“Todos os dias nascem deuses,
Alguns maiores e outros menores
do que você.”
(No Olimpo – Nação Zumbi)
Falando em medos e deuses, vale
refletir um pouco sobre o medo da vez, esse medo nem um pouco momentâneo. Pelo
visto, infelizmente, ele ainda vai se estender por um bom tempo entre nós.
É incrível como nós seres
humanos, seres vivos tão complexos e com tantos anos de história nas costas,
ainda temos que lidar com algo que era para ser tão insignificante. Como é que
com todo o conhecimento que a gente já adquiriu durante tanto tempo, ainda não
fomos capazes de vencer um mísero vírus? Um ser que nem metabolismo tem e cuja
função é só se replicar dentro das células de um outro ser. Já fazem quatro ou
cinco meses que começou toda essa história e ainda estamos perdendo tantas
vidas por causa disso.
Mas é bem verdade que eles estão
no planeta bem antes da gente e como falei: eles só servem para se replicarem e
na maioria das vezes causarem danos. No entanto, quanto mais danos eles causam,
menos eles sobrevivem, pois não vão ter onde se replicarem. Esperto é o vírus do herpes 1, pois esse tipo de
vírus vive dentro da gente, não causa quase nenhum mal e ainda sobrevive há séculos
dentro dos humanos.
E ainda tem gente que diz que
isso é praga dos deuses, como aquelas pragas que tiveram lá no Egito Antigo.
Pior ainda é quem afirma que orando e fazendo jejum seremos capazes de
combatê-los. Sou cético demais para acreditar que deuses seriam capazes de
enviar tantos males para nós seres humanos, não sei nem se acredito em
deuses, avalie em pragas enviadas por eles.
Aliás, muito disso é causado nada
mais, nada menos do que por nós mesmos. Afinal, foi devido a condições
precárias dos wet markets da China (que por incrível que pareça são
operados por humanos, sabia?) que o vírus se espalhou dos animais silvestres
para nós. Era algo já previsto por cientistas, mas teimosos como somos, não
acreditamos que uma pandemia dessas fosse capaz de acontecer em tempos tão
modernos. “Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era
possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis”.
Na verdade, eu não tenho medo e
nem me preocupo tanto assim com a possibilidade de ser contaminado pelo vírus
da vez. No entanto, tenho plena consciência da letalidade que ele pode causar e
procuro seguir os cuidados propostos pelas autoridades que nos passam credibilidade.
Isso tudo me faz é pensar, refletir e filosofar mais sobre a condição pela qual
estamos passando do que pensar nos possíveis riscos ocasionados pelo vírus.
Já passei horas na janela olhando
para o mundo, ouvindo o silêncio das noites e cada vez mais o silêncio do dia
também e sempre me pego filosofando sobre essa condição de prisioneiros que
estamos de nós mesmos. E só consigo pensar no futuro, como seremos depois de
tudo isso? Esse momento atual é passageiro e necessário, mas quero é descobrir
como será o mundo depois disso tudo, torcendo demasiadamente para que meus
semelhantes se renovem depois de toda essa tormenta e saiam melhores dela,
torcendo com todas as forças para que nós sejamos mais conscientes de nós
mesmos como espécie humana que habita esse planeta.
Apenas pense que nesse exato
momento em que você me lê, provavelmente estará em sua casa segura, mas pense também
em tantos outros seres humanos que estão por aí ao léu. Só reflita e busque ser
uma pessoa melhor quando tudo isso acabar. Porque isso vai acabar, tudo isso
uma hora vai passar e eu estarei aqui com um sorriso no rosto e de braços
abertos, pronto para acolher quantos seres humanos eu for capaz de cativar.
Para finalizar, não sei, talvez
eu seja um herói insignificante e improvável de um livro de Camus que segue escrevendo para
ninguém ler, um herói insignificante e improvável, mas imprescindível. Ou quem sabe eu siga sendo apenas humano, demasiado humano, um
cidadão comum, como aquele da música do Belchior, e que só está querendo
sobreviver a mais uma peste...
“Mas o anjo do Senhor, de
quem nos fala o Livro Santo
Desceu do céu pra uma
cerveja, junto dele, no seu canto
E a morte o carregou,
feito um pacote, no seu manto.
[...]
Que a terra lhe seja
leve.”
(Pequeno perfil de um cidadão comum – Belchior)