"Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino"...

sábado, 12 de janeiro de 2019

“Os meus olhos coloridos me fazem refletir”...

Ataques existem há muito tempo, mas muitos fecham os olhos pra não ver. E não estou me referindo apenas àqueles criminosos. Em meio a tudo isso, a cultura e a arte sobrevivem há muito tempo, mas muitos seguem fechando os olhos pra não ver. O Ceará é um estado rico culturalmente, mas acredito que pouca gente se interessa por isso. Tem tanta coisa boa produzida aqui e recebemos tantos artistas de fora e, o melhor, muitas vezes de graça ou a um preço pequeno, mas poucas pessoas sabem ou simplesmente não se interessam mesmo. Existem tantas manifestações culturais feitas por aqui, o maracatu, por exemplo, quem aí sabe do que se trata?
O maracatu não é resistência, o maracatu é existência. Ele já existe na nossa sociedade há mais de um século, mas quantos conhecem? Tenho certeza que se mais pessoas conhecessem e tocassem um tambor, muitas dessas mazelas que estão aparecendo diariamente na mídia não estariam acontecendo hoje.
O maracatu engloba gente de todo o tipo, desde o erê ao griô, passando pelo velho e pelo moço, pela mulher e pelo homem, pelo gay e pela lésbica, pelo negro e pelo branco, pelo abastado e pelo necessitado. Toda a sociedade está representada no maracatu, mas, infelizmente, o maracatu não representa toda a sociedade. O preconceito e o medo ainda são enormes demais.
O maracatu é o que tem de mais ancestral em nós seres humanos, porque é o ritmo que impulsiona a vida. É o pulsar, o bater no couro que busca o equilíbrio e a paz, assim como os nossos órgãos que buscam se equilibrar pulsando dentro da gente. É o querer aprender sobre si mesmo e ao mesmo tempo se doar ao outro, são momentos de autoconhecimento e também de altruísmo. É o fazer coletivo que cria a harmonia que é enviada aos cosmos, é o toque conjunto que cria a energia positiva dentro de cada um dos seus brincantes.
O maracatu é brincar, na melhor essência da palavra. No maracatu você não vê uma pessoa que não esteja alegre, elas estão sempre com um sorriso no rosto, brincando, se divertindo da sua maneira. Seja no ferro, no gonguê, no xequerê, na caixa, na alfaia, no bumbo, no canto ou na dança, todos ali estão felizes ao brincar de maracatu. Eu, particularmente, me transformo ao brincar de maracatu. Quem nunca me viu com uma alfaia e duas baquetas na mão, não me conhece de verdade. Se você reza, ora ou medita, eu toco tambor pra entrar em transe. Sim, o maracatu é transcendental, se você se deixa levar, você consegue curar tudo que lhe aflige.
O maracatu já existe no Ceará desde o século XIX, talvez até antes disso. O maracatu é Patrimônio Imaterial de Fortaleza desde 2015 e a cidade possui cerca de 16 grupos que têm seu auge nos desfiles de carnaval na avenida Domingos Olímpio. O maracatu é comemorado dia 25 de março, mesma data da Abolição da Escravatura no Ceará, mas, na verdade, a gente comemora é todo dia. O maracatu é um ritmo afro-brasileiro de cunho percussivo e que conta histórias da cultura negra em suas loas. O maracatu é um cortejo, uma celebração, uma homenagem ao Rei do Congo e à Rainha de Angola, e conta com outros personagens como o porta-estandarte, o casal de preto velho, o balaieiro, a boneca calunga, os índios, as baianas, os orixás, os príncipes e as princesas, os tiradores de loas, os batuqueiros. 
Salve Raimundo Boca Aberta! Salve Mestre Juca do Balaio! Salve Zé Rainha! Salve Descartes Gadelha! Salve Pingo de Fortaleza! Salve Calé Alencar! Salve Eulina Moura! Salve Inês Mapurunga! Salve Eliahne Brasileiro! Salve Dona Fátima! Salve o maracatu cearense! Salve a cultura e a arte do meu estado! Elas são minhas, são suas, são nossas, você sabia?
Mas muitos seguem fechando os olhos pra não ver...


domingo, 6 de janeiro de 2019

Icó não é para principiantes...

"Icó é surreal!", essa foi uma frase que ouvi de um nativo daquela cidade. E durante os quatro dias que permaneci em Icó, pude perceber que essa afirmação é muito verdadeira. Estar naquele lugar é como se você estivesse vivendo em um realismo fantástico, onde o que é real parece fantasioso e onde a fantasia ganha ares de realidade; onde você não sabe mais o que é de verdade e nem o que é de mentira; onde não se sabe se o que você está vivenciando é a realidade ou é a fantasia. Tudo isso, junto e misturado, compõem o cenário de cultura, arte e história de Icó, a Princesa do Sertão do meu Siará Grande.

"Tarde de sol arrebol
Nas tardes quentes sou amante vivente
Das terras de Icó.
Amor distante, eu sou declarado amante,
Caliente, ardente, sou sobrevivente
Das terras quentes do Icó."
(Tardes de Icó - DruLucca)

Localizada no Centro-Sul do estado, em meio ao sertão cearense, molhada pelas águas do Rio Salgado, já vizinha aos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, perto de Jaguaribe, Iguatu e Orós, a cidade de Icó possui o principal sítio histórico tombado em nosso estado.
A sua história começou em 1682, quando a região foi invadida por forasteiros que expulsaram os índios da tribo dos Icós. Desde então, a cidade recebeu famílias abastadas, dentre elas a do francês Pedro Théberge, que levaram uma forte influência europeia aos costumes e à arquitetura do local. Essa influência estrangeira é vista nos modelos arquitetônicos dos seus muitos casarões e sobrados espalhados pelo centro histórico de Icó.
Hoje, humildes e abastados trafegam pelas mesmas ruas, mas nem sempre foi assim. O centro histórico de Icó é composto por três ruas principais, são elas: a Rua Grande, a Rua do Meio e a Rua Larga. Durante o período de escravidão, a Rua do Meio era onde podiam transitar os escravos, os humildes, as pessoas mais pobres e ela fazia a separação entre as vias dedicadas aos mais ricos, aos mais poderosos, que eram a Rua Grande e a Rua Larga. 

Icó

Naquela cidade o divino e o profano trafegam no mesmo lugar, isso pode ser visto na Bandinha de Música, que passa dias do mês de dezembro tocando nas novenas em homenagem ao Senhor do Bonfim, mas no dia 01 de janeiro, às 5h da manhã, sai arrastando uma multidão, sejam ricos ou sejam pobres, que vão se esbarrando pela Rua Grande. Trata-se do primeiro carnaval a ser comemorado no Brasil, logo na passagem de ano a Bandinha toca ao som dos melhores sopros de marchinhas que fazem a população seguir em cortejo por um longo percurso. Aquela mesma rua onde as famílias tradicionais da cidade fecharam os quarteirões para promoverem suas festas particulares de revéillon, é a mesma rua que une humildes e abastados atrás de uma Bandinha que só quer saber de profania naquele momento. E a mesma Rua Grande, logo após a folia, já tem que se transformar, pois é por lá que às 5h da tarde vai passar a procissão do Senhor do Bonfim e o calçamento deve estar enfeitado com tapetes decorativos e as janelas das casas da rua devem estar ornamentadas com a bandeira do santo. E adivinha só quem são os responsáveis pela música durante o trajeto da procissão? A mesma famigerada Bandinha de Música.

Rua Grande ás 5h da manhã do dia 01/01. Cortejo da Bandinha de Música.

A cidade possui diversas igrejas, sendo a mais antiga delas a Igreja da Matriz, construída no ano de 1709. A Igreja da Matriz ou Igreja de Nossa Senhora da Expectação é o prédio mais antigo de Icó e fica localizado no Largo do Théberge.
O Largo do Théberge é uma gigantesca praça, com cerca de um quilômetro de extensão, onde estão localizados diversos outros prédios históricos como o Teatro da Ribeira dos Icós, a Casa de Câmara e Cadeia, a Igreja do Senhor do Bonfim, o Sobrado do Barão do Crato, o Sobrado do Canela Preta, a Igreja de São José e, lá no final do Largo, a Igreja do Rosário dos Homens Pardos, que foi construída e frequentada pelos escravos, deve ser daí o infeliz motivo de ser a igreja mais afastada dentre todas.

Largo do Théberge

Em Icó, o velho e o novo caminham lado a lado em um ambiente totalmente envolto em cultura. Todo final de ano, durante quinze dias do mês de dezembro, acontece o Festival Icozeiro que já está na sua oitava edição. Nesse período, os jovens artistas locais ocupam os diversos prédios e espaços históricos da cidade para divulgarem suas diversas artes. Realizado pela Associação Filhos e Amigos de Icó (AMICÓ), o Festival recebeu em 2018 o Selo de Responsabilidade Cultural da Secretaria de Cultura do Ceará, devido às suas Boas Práticas de incentivo à arte, educação e cultura.

"Vento que vem do Aracati
Pelo leito seco do Salgado, 
Leva a fumaça cinza daqui,
Traz a chuva para molhar o roçado.
(...)
Vou pras bombas do 'Hoje Exaltado',
Eu me curvo, eu me queimo nas bombas.
Ouço o grito dos tamarineiros,
Guardiões das botijas de Glória.
(...)
E quem teme as crendices ditas pelo povo
Não brinca com o fogo da fé de um cristão.
(...)
Não tire o santo do lugar,
Não tire o santo do altar dele.
Se essa baleia acordar
Esse sertão vai virar mar.
E eu quero ver neguim na rede
Pra quem não sabe nadar."
(Tamarineiros - DruLucca)

Icó é uma cidade que respira suas histórias, lendas e tradições. Algumas delas eu conheci através da letra de "Tamarineiros", uma composição do cantor/compositor icoense DruLucca, outras eu aprendi ouvindo o povo de lá falar. No final são tantas que você já não sabe mais o que é fato real ou apenas lenda.
Em determinada tarde, muito ouvi falar do "vento do Aracati", que é aquele que chega após um dia penoso de sol ardendo em suas cabeças. De noite ele vem pelo leito do Rio Salgado e sai arrastando tudo que tiver pela frente. E eu pude presenciar, em uma cena que até hoje não sei se foi real ou ficção, a força do vento do Aracati derrubando uma enorme estrutura que só não causou uma tragédia por conta do "Arquiteto Criador" e a sua matemática "milimetricamente precisa", como diria um amigo meu.
É esse mesmo vento que indica a direção da "fumaça cinza" que é produzida pelas bombas do Senhor do Bonfim na festa que ocorre em 01 de janeiro. Diz a lenda que se o vento levar a fumaça pro lado do rio, o ano será chuvoso; mas se ela rumar pro sertão, será mais um ano de seca. 
Outra história que envolve o Senhor do Bonfim é a "lenda da baleia". Diz-se que existe uma baleia dormindo embaixo do altar da igreja dedicada a esse santo e, caso a imagem dele for retirada de lá, essa baleia acorda e o Rio Salgado vira um braço de mar que vai fazer o sertão se alagar. Por volta da década de 1960 foi construída uma nova igreja que seria dedicada ao Senhor do Bonfim, mas cadê a coragem de tirarem o "santo do lugar"? A nova igreja passou a ser dedicada a São José e a imagem do Senhor do Bonfim permanece até hoje na igreja antiga.
Aliás, participar da queima das bombas do Senhor do Bonfim, o "Hoje Exaltado", foi uma das experiências mais impactantes e incríveis que eu tive na vida. Foi uma mistura de emoção, medo e transcendência, além de choro, arrepio e, no final, muitos risos. Impressionante a forma como as lágrimas caíam dos meus olhos, sem eu querer, mas só em estar observando todo aquele ritual maravilhoso. As bombas do Senhor do Bonfim consistem em um corredor de fogos de artíficio, colocados no chão da rua que percorre o Largo do Théberge. Em uma distância de cerca de 500 metros, logo após o fim da procissão, as bombas são acesas e inúmeros fiéis vão andando por cerca de 10 minutos em meio ao caminho de fogo que é produzido naquele local, em um ritual que só se entende de verdade se estiver lá para ver. Trata-se da principal tradição de Icó e que me causa bons arrepios até agora ao lembrá-lo, quem tiver a oportunidade vale muito a pena vivenciar essa experiência.

Bombas do Senhor do Bonfim. Foto de Gley Almeida (Instagram: @gleyalmeida)

A origem das bombas do Senhor do Bonfim se deu após uma rixa entre Glória, uma senhora descendente do Visconde do Icó, e o Barão do Crato. Insatisfeito com os tamarineiros que serviam de sombra e abrigavam maltrapilhos que apareciam na cidade, além da insatisfação com o barulho e odor causado pelos animais dos mesmos, o Barão do Crato ordenou que as árvores fossem arrancadas daquele local. No entanto, Glória adquiriu "botijas" de pólvora e disse que implodiria o sobrado do Barão caso ele fosse adiante com a ideia de derrubar as árvores. Moral da história, os tamarineiros permanecem até hoje no mesmo lugar e a pólvora adquirida por Glória foi doada para se fazer as bombas do Senhor do Bonfim.


O Barão do Crato está envolvido ainda em outra história muito peculiar, o romance proibido que ele teve com sua irmã. Ao sair do Brasil para ir estudar na Europa, o Barão do Crato deixou uma irmã ainda pequena e ao retornar ao país eles acabaram se apaixonando. Devido ao longo período em que passaram longe um do outro, eles não criaram um laço de fraternidade, mas sim uma paixão, um amor proibido. Diz a história que o Barão chegou a ir pedir ao Papa Pio IX a autorização para casar-se com sua própria irmã, mas o Papa negou. No fim, ele e sua irmã, Maria do Rosário, decidiram que não se entregariam e nem se casariam jamais com outras pessoas, e o pacto foi cumprido, ficando ambos solteiros até a morte.
Icó nos reserva ainda a história do Teatro da Ribeira dos Icós, construído por Pedro Théberge no ano de 1860. Considerado o primeiro teatro a ser construído no Ceará, parece que ele nunca foi inaugurado. Segundo a história, sem terem costume de frequentar lugares desse tipo, as famílias ricas de Icó, no dia da inauguração do teatro, preferiram pedir aos seus escravos para irem previamente ao lugar para verem quais trajes as demais pessoas estavam usando, e assim, se produzirem adequadamente para aquela ocasião. Acontece que ninguém das famílias da elite se arriscou em ser o primeiro a ir ao teatro e somente os seus escravos apareceram no local. Mas se isso é uma lenda cômica ou um fato real, isso daí já é uma outra história!

"Sertão,
Um ser tão estranho
Pra quem não sabe
O tamanho desse chão.
(...)
Antes de vir pra essas terras,
Limpe os seus pés, por favor.
Esse chão mesmo rachado,
É sagrado pra quem conhece bem."
(Sertão - DruLucca)

Por fim, essas são apenas explanações de um nobre forasteiro que só esteve lá por duas vezes. No final de 2015 pra 2016 pude apenas conhecer algumas das histórias, lendas e tradições de Icó, agora no final de 2018 pra 2019 pude vivenciá-las e, digo mais, fui além e vi a história passar sob meus pés, senti o sol do sertão esquentar minha cabeça, senti o vento do Aracati mostrar sua força e todas essas lembranças permanecerão em minha memória como uma boa experiência sensitiva e transcendental. No entanto, pode ser que isso tudo seja só fantasia da minha cabeça mesmo...