"Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino"...

terça-feira, 26 de agosto de 2025

É MARA-CATU...

FERRO

Retorcido pelos braços de Ogum, cunhado na forja Solar, lá vem ele trazendo a cadência do nosso batuque. Vem na frente do povo, abrindo os caminhos, ele é o nosso chão, a nossa marcação. Vem badalando seu grave e seu agudo, marcando o tempo e o contratempo do nosso ritmo. É um instrumento fundamental e exclusivo dos batuques do maracatu cearense, de longe já se pode escutar o badalar do nosso ferro de maracatu...


AGOGÔ

Ostinato incansável que toca sem parar, claves que seguem firmes a marcar, mantendo o padrão rítmico para os demais instrumentos batucar. Cada batida em seu corpo metálico é uma mensagem a ser decifrada por quem está a escutar. É um chamado antigo, trazido por seu mensageiro Exu. Nas mãos do tocador, ele se faz presente com leveza e precisão, abrindo os ouvidos da multidão. Quando o agogô ressoa, é sinal de que o batuque vai começar. É som de encruzilhada no compasso Solar, tocando um maracatu, uma congada ou um ijexá...


AGBÊ

Com as mãos firmes e dançantes a lhe segurar, lembra até um trem no seu balançar. O tocador vira um maquinista a lhe guiar, sempre no seu “piuí tcha tcha tcha”. No xique-xique gostoso, no compasso prum lado e pro outro, é um bailado que também lembra as ondas do mar, um vai e volta da maré Solar, um remelexo bonito de mamãe Iemanjá. Enche o pote, seca o pote. Enche o pote, seca o pote. Segura o agbê com sua saia rodada que ele chegou para chacoalhar...


CAIXA

Acelerada, apressada, avexada, lá vem ela toda se amostrando, com seus toques finos de tão agudos, com sua esteira tamborilando serelepe na pele do tambor. Difícil de se tocar, mas gostosa de se ouvir. As mãos precisam ser ágeis para lhe atacar em seus tempos binários, com suas colcheias e semicolcheias, com suas levezas e acentuações. O preenchimento é o seu objetivo, não pode nunca deixar de soar. Vem como ventania de Oyá, traz a métrica do batuque Solar, é a caixa que não pode parar...


ALFAIA

É o que tem de mais ancestral em nós seres humanos, é o ritmo que impulsiona a vida, é o pulsar que nos faz sentirmos vivos. É a força bruta, mas suave, é o couro morto, mas que ressuscita, é o baque pesado, mas sutil. É a extensão do meu corpo, é o movimentar dos meus braços, é o dançar coladinho a ela. É o ressoar, é o reverberar, é o deixar fluir. É a diversão, é a satisfação, é a emoção. É o entrar em transe ao som dos toques, é o ir para outro universo com as suas batidas, é o transcendental que cura qualquer mal. É a comunicação antiga que chega aos meus ouvidos, é o falar dos meus antepassados, é Ngoma, o meu pai tambor. Tudo isso é a minha alfaia que se junta a tantas outras para celebrar numa festa Solar...


BUMBO

A pisada forte no chão, o pulsar do meu coração. O guia que me rege, o bater do tambor que me protege. A firmeza da batida é o que lhe marca, a explosão do som é o que lhe diferencia no batuque Solar. A marcação deve ser feita no momento certo, na exatidão do instante, no segundo mais preciso, só assim para acertar forte no peito de todos que estão ao seu redor. Esse é o bumbo que vem para fechar o batuque com o seu som grave, ele vem trazendo a força do trovão de Xangô...


Textos de Janderson Oliveira
Fotos de Letícia Ramalho (@letiramalhofoto)

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Zambi quer bailar


Foto de Tiago de Melos (@tiagodelemos)

Xicarangomo, toca tambor pra Zambi
Com a fala do instrumento lhe chame
Anuncia que vai começar o xirê
Coloca sorriso na cara do erê
           
Joga para longe o banzô
Toca mais forte o tambor
Afasta de mim o lundu
Batuca para nós o maracatu
 
Zambi quer bailar
Vai sacudir bem o corpo
Mexer bem as cadeiras
Até perder as estribeiras
 
Adarrum, aguerê, alujá
Samba, coco, ijexá
Qualquer coisa que o tambor ressoar
Toca logo, que Zambi quer bailar

(Janderson Oliveira)

domingo, 6 de julho de 2025

Mãos delicadas/calejadas...

 Mestre Albino do Coco de Volta Redonda, em Paracuru (CE)
Foto de Bruna Marques (@brunamarques.photo)

É preciso mãos delicadas para se tocar um instrumento.
É preciso mãos calejadas para se tocar um instrumento.
Mãos calejadas da lida, mãos calejadas da vida, mas a delicadeza que só tem nas mãos de quem toca um instrumento.
E aquele menino que aprendeu a usar as mãos escutando o som das primeiras notas na rabeca ao pé do ouvido, se transformou no Mestre que puxa a cantoria que se estende ao longo da noite.
É ele quem mantém a cultura popular do forró, do coco e da embolada viva e que vai passando de geração em geração.
O tempo também vai passando e mais gente se admirando com o som daquele instrumento.
E aquelas mãos?
Aquelas mãos vão envelhecendo cada vez mais calejadas... e delicadas... e calejadas... e delicadas...

sexta-feira, 4 de julho de 2025

O meu amor é fluido

O meu amor é fluido
Ele transborda pra vários lugares
Feito muitos braços de rio
Ele molha várias paisagens
 
Viaja desde a nascente
Corre quente de cima até embaixo
Percorre vários canais
Faz um mar onde antes era riacho
 
O meu amor é fluido
Ele transborda pra todos os lados
Molha montes e florestas
Banha cachoeiras e lagos
 
Brota da fonte primitiva
Flui pelo leito encharcado
Na beirada do abismo
Penetra no vale encantado
 
O meu amor é fluido
Ele só quer desembocar
Na tua beira de rio
Ele só quer se derramar
 
Passa por caminhos e curvas
Escorre por picos e montanhas
Mas no final sempre desemboca
Lá onde toda a vida se banha

                    (Janderson Oliveira)

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Jesus tem o rosto de mulher

Jesus tem o rosto de mulher
E ela é negra
Jesus é a cara de Maria
Maria de Nazaré, Maria das Dores, Maria das Graças
E de tantas outras mulheres que só vivem na desgraça
E Jesus tem a cara de todas elas
Sejam das periferias, sejam das favelas
Mulheres mães, mulheres meninas
Mulheres trans e até não femininas
Menina mulher da pele preta
Desde nova não tem medo de careta
Menina, mulher, Maria que nos pariu
Todas elas têm a cara do Brasil
Metade do mundo é formado por elas
E a outra metade são os filhos delas
Então por que deixá-las com tanta dor?
Então por que recusar-lhes o amor?
Volta Jesus, vem tuas filhas salvar
Ensina aos homens que a elas devem amar
Volta Jesus, que o negócio deu errado
Ensina aos que ficaram como se foge do pecado

                                                  (Janderson Oliveira)

sábado, 4 de janeiro de 2025

Os meus ídolos...

Fotos de Leticia Ramalho (@letiramalhofoto)

Ainda bem que eu nasci no Nordeste. Este fato me leva ao entendimento que meus ídolos são outros, eles não estão no mainstream, mas ainda assim estão no ápice do que há de melhor na nossa cultura. 
Os meus ídolos agora são outros, eles estão espalhados pelas ruas do Bairro do Benfica, nas ladeiras do Bairro João Cabral e de Olinda. Eles estão no Alto do Cruzeiro, na Comunidade dos Souza e na Cachoeira da Onça. Estão ainda na Praia de Almofala, na cidade do Crato e nas históricas Igarassu e Ilha de Itamaracá.
Os meus ídolos são um mestre que vive o reisado na Bela Vista, os palhaços Mateu de Juazeiro, os irmãos que cantam e encantam em seu terreiro, uma mestra que se fez mestra tão cedo e um mestre que anda com seu bacamarte só pregando a paz. 
Os meus ídolos são toda uma família que samba coco em Arcoverde, uma preta velha que balança o ganzá em Custódia, uns caboclos que balançam suas plumas e jogam suas lanças em Araçoiaba.
Os meus ídolos são um gênio que balança maraca em Ibicuitaba, uma líder quilombola que bate pandeiro e canta coco no Sítio Vassourinhas, um jovem mestre de batuque com a voz rouca, um pai de santo com um sorriso contagiante, um mestre que veio de outras terras para formar caravana por aqui em Fortaleza.
Os meus ídolos são um rabequeiro que faz sua rabeca falar pelo Nordeste, uma macumbeira de São Luís do Maranhão, um mestre que mata e ressuscita o seu boi na Barra do Ceará, uma sertaneja que canta forró pelo interior afora.
Os meus ídolos são um encantado que foi cantar lá no céu, uma rainha cirandeira da beira da praia, uma senhora frágil que ainda canta coco com toda sua força, um mestre que entoa o baque forte do maracatu e um parceiro imponente que há anos toca sua alfaia aqui ao meu lado. 
Os meus ídolos são pais que cantam, filhos que dançam e netos que dormem no colo dançante de suas mães. Os meus ídolos calçam tamancos, pintam a cara de negro, usam saias rodadas, carregam suas espadas, batem seus tambores.
Eles não precisam de holofotes, fazem a festa e perpetuam a cultura ali mesmo, no seu cantinho, no seu espaço. Os meus ídolos são gente comum que não faz arte por dinheiro, mas que brinca com alegria e festeja na sua comunidade...