"Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino"...

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Era 12 de novembro...

Era 12 de novembro, eu me lembro.
O telefone tocou, a avó atendeu, o mais velho chorou, o caçula não compreendeu. O caçula era eu, em um dia distante, em uma típica casa brasileira dos anos 90. À tarde, fomos à escola aprender a lição, mas a lição mais dura foi aquela que ficou no coração. Um padrinho foi buscar na escola os dois irmãos, passamos na igreja, fizemos uma oração. Chegando em casa, várias pessoas, não sei por que chorei, só chorei porque vi todos chorando.
Em um outro dia distante, e esse, com certeza, não saberei precisar qual era, estávamos todos na parte de trás de um carro grande. Na minha ingênua cabeça era mais uma viagem de férias escolares, estávamos indo para a cidade de nossa família. Chegando lá, a criança só queria brincar, mas ao seu redor era só tristeza.
Em frente à casa da família, a igreja, cada hora que passava, a multidão aumentava, aumentava, aumentava. Até que, do pé do portão, avistei o carro que trazia o caixão. Perguntaram: “você quer ir lá ver, meu filho? É seu pai”. Morto. É claro que uma criança de 5 anos não quer ver seu pai morto nunca.
Fiquei na lembrança com a imagem de quando tinha por volta de 3 anos, eu na sua cacunda, indo comprar revistinha dos Trapalhões na banquinha em frente ao mercado onde ele um dia trabalhou. Fiquei na memória com o dia de chuva, ao lado da lagoa, onde nos protegemos em uma cabana de palha, jogando futebol com uma chinela que servia de bola improvisada. Fiquei na lembrança com o dia do churrasco na área da sala, grandes espetos que perfuravam as carnes gostosas com farinha que ele assou pra mim e pro irmão mais velho.
Avanço no tempo, 2017. A mesma cidade do interior, a mesma casa, a mesma igreja. Agora é o pai do pai que estava no caixão. Eu, um homem feito, já tinha coragem de ir ver. Olhei e só enxerguei o próprio pai, não deu tempo de nada, a não ser desabar em lágrimas, ter que ser acolhido e sentado naquela mesma igreja que não entrei quando era criança. O avô era a cara do pai, o pai era a cara do avô, eu sou a cara de ambos. Eram duas gerações de pais indo embora. Era um filho que perdia seu pai e seu avô. Era um órfão duas vezes. E o pior, ninguém nunca ocupou esses vazios.
Não chorei pela morte do avô, naquele instante eu chorava pela morte do pai que não havia ido velar 24 anos antes. Mas parece que ali fechava-se um portal, era a cena que eu precisava para deixar o luto para trás. Como sofreria uma criança de 5 anos? Como sofreu um homem de quase 30?
Mas a ficha ainda não havia caído. Aquela ficha da ligação de 1993 só foi cair 25 anos depois, em 2018. “Eu, homem feito, tive medo e não consegui dormir”. Em uma noite solitária, me abracei àquela velha foto, a mesma foto que está espalhada na casa de diversos parentes. Somente com ela me acalmei e percebi que a ficha realmente tinha caído. Ao lado, talvez houvesse um punhal esperando para pôr fim em tantas angústias e lástimas que a vida havia me pregado até aquele momento. Por sorte, o dia raiou e eu ainda estava lá deitado ao lado da velha foto, ela me salvou, ele me salvou.
Hoje é 12 de novembro, eu me lembro. Já escrevi muito sobre isso tudo, já derramei rios de lágrimas sobre isso tudo. Mas venci o medo, o luto e a ausência. Eu, homem feito, posso dormir em paz, abençoado pelo pai e pelo avô. O caçula agora espera o filho que um dia chegará...

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Entre sim, não e talvez

No Brasil
Não, nunca é não
E quem quer ouvir um sim
Ganha no máximo um talvez
 
Talvez tenha dinheiro
Talvez tenha tostão
Talvez não tenha nada
Nem mesmo um pedaço de pão
 
Sim, nós temos bananas
Sim, nós temos o carnaval
Mas não tem o Pierrot
Talvez tenha samba e o escambau
 
Sim, aqui é o país do futuro
Mas já faz setenta anos
Talvez daqui a mais setenta
Alcançaremos nossos planos
 
Não, aqui não tem terremoto
Aqui não tem vulcão
Mas aqui tem muita miséria
Com certeza devido a corrupção
 
Talvez isso um dia melhore
Talvez isso não mais aconteça
Talvez seremos orgulho pra ONU
Talvez um dia o PIB cresça
 
Mas não
Acho que não será dessa vez
E quem sabe um sim
Vai continuar sendo um talvez

(Janderson Oliveira)

terça-feira, 26 de agosto de 2025

É MARA-CATU...

FERRO

Retorcido pelos braços de Ogum, cunhado na forja Solar, lá vem ele trazendo a cadência do nosso batuque. Vem na frente do povo, abrindo os caminhos, ele é o nosso chão, a nossa marcação. Vem badalando seu grave e seu agudo, marcando o tempo e o contratempo do nosso ritmo. É um instrumento fundamental e exclusivo dos batuques do maracatu cearense, de longe já se pode escutar o badalar do nosso ferro de maracatu...


AGOGÔ

Ostinato incansável que toca sem parar, claves que seguem firmes a marcar, mantendo o padrão rítmico para os demais instrumentos batucar. Cada batida em seu corpo metálico é uma mensagem a ser decifrada por quem está a escutar. É um chamado antigo, trazido por seu mensageiro Exu. Nas mãos do tocador, ele se faz presente com leveza e precisão, abrindo os ouvidos da multidão. Quando o agogô ressoa, é sinal de que o batuque vai começar. É som de encruzilhada no compasso Solar, tocando um maracatu, uma congada ou um ijexá...


AGBÊ

Com as mãos firmes e dançantes a lhe segurar, lembra até um trem no seu balançar. O tocador vira um maquinista a lhe guiar, sempre no seu “piuí tcha tcha tcha”. No xique-xique gostoso, no compasso prum lado e pro outro, é um bailado que também lembra as ondas do mar, um vai e volta da maré Solar, um remelexo bonito de mamãe Iemanjá. Enche o pote, seca o pote. Enche o pote, seca o pote. Segura o agbê com sua saia rodada que ele chegou para chacoalhar...


CAIXA

Acelerada, apressada, avexada, lá vem ela toda se amostrando, com seus toques finos de tão agudos, com sua esteira tamborilando serelepe na pele do tambor. Difícil de se tocar, mas gostosa de se ouvir. As mãos precisam ser ágeis para lhe atacar em seus tempos binários, com suas colcheias e semicolcheias, com suas levezas e acentuações. O preenchimento é o seu objetivo, não pode nunca deixar de soar. Vem como ventania de Oyá, traz a métrica do batuque Solar, é a caixa que não pode parar...


ALFAIA

É o que tem de mais ancestral em nós seres humanos, é o ritmo que impulsiona a vida, é o pulsar que nos faz sentirmos vivos. É a força bruta, mas suave, é o couro morto, mas que ressuscita, é o baque pesado, mas sutil. É a extensão do meu corpo, é o movimentar dos meus braços, é o dançar coladinho a ela. É o ressoar, é o reverberar, é o deixar fluir. É a diversão, é a satisfação, é a emoção. É o entrar em transe ao som dos toques, é o ir para outro universo com as suas batidas, é o transcendental que cura qualquer mal. É a comunicação antiga que chega aos meus ouvidos, é o falar dos meus antepassados, é Ngoma, o meu pai tambor. Tudo isso é a minha alfaia que se junta a tantas outras para celebrar numa festa Solar...


BUMBO

A pisada forte no chão, o pulsar do meu coração. O guia que me rege, o bater do tambor que me protege. A firmeza da batida é o que lhe marca, a explosão do som é o que lhe diferencia no batuque Solar. A marcação deve ser feita no momento certo, na exatidão do instante, no segundo mais preciso, só assim para acertar forte no peito de todos que estão ao seu redor. Esse é o bumbo que vem para fechar o batuque com o seu som grave, ele vem trazendo a força do trovão de Xangô...


Textos de Janderson Oliveira
Fotos de Letícia Ramalho (@letiramalhofoto)

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Zambi quer bailar


Foto de Tiago de Melos (@tiagodelemos)

Xicarangomo, toca tambor pra Zambi
Com a fala do instrumento lhe chame
Anuncia que vai começar o xirê
Coloca sorriso na cara do erê
           
Joga para longe o banzô
Toca mais forte o tambor
Afasta de mim o lundu
Batuca para nós o maracatu
 
Zambi quer bailar
Vai sacudir bem o corpo
Mexer bem as cadeiras
Até perder as estribeiras
 
Adarrum, aguerê, alujá
Samba, coco, ijexá
Qualquer coisa que o tambor ressoar
Toca logo, que Zambi quer bailar

(Janderson Oliveira)

domingo, 6 de julho de 2025

Mãos delicadas/calejadas...

 Mestre Albino do Coco de Volta Redonda, em Paracuru (CE)
Foto de Bruna Marques (@brunamarques.photo)

É preciso mãos delicadas para se tocar um instrumento.
É preciso mãos calejadas para se tocar um instrumento.
Mãos calejadas da lida, mãos calejadas da vida, mas a delicadeza que só tem nas mãos de quem toca um instrumento.
E aquele menino que aprendeu a usar as mãos escutando o som das primeiras notas na rabeca ao pé do ouvido, se transformou no Mestre que puxa a cantoria que se estende ao longo da noite.
É ele quem mantém a cultura popular do forró, do coco e da embolada viva e que vai passando de geração em geração.
O tempo também vai passando e mais gente se admirando com o som daquele instrumento.
E aquelas mãos?
Aquelas mãos vão envelhecendo cada vez mais calejadas... e delicadas... e calejadas... e delicadas...

sexta-feira, 4 de julho de 2025

O meu amor é fluido

O meu amor é fluido
Ele transborda pra vários lugares
Feito muitos braços de rio
Ele molha várias paisagens
 
Viaja desde a nascente
Corre quente de cima até embaixo
Percorre vários canais
Faz um mar onde antes era riacho
 
O meu amor é fluido
Ele transborda pra todos os lados
Molha montes e florestas
Banha cachoeiras e lagos
 
Brota da fonte primitiva
Flui pelo leito encharcado
Na beirada do abismo
Penetra no vale encantado
 
O meu amor é fluido
Ele só quer desembocar
Na tua beira de rio
Ele só quer se derramar
 
Passa por caminhos e curvas
Escorre por picos e montanhas
Mas no final sempre desemboca
Lá onde toda a vida se banha

                    (Janderson Oliveira)

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Jesus tem o rosto de mulher

Jesus tem o rosto de mulher
E ela é negra
Jesus é a cara de Maria
Maria de Nazaré, Maria das Dores, Maria das Graças
E de tantas outras mulheres que só vivem na desgraça
E Jesus tem a cara de todas elas
Sejam das periferias, sejam das favelas
Mulheres mães, mulheres meninas
Mulheres trans e até não femininas
Menina mulher da pele preta
Desde nova não tem medo de careta
Menina, mulher, Maria que nos pariu
Todas elas têm a cara do Brasil
Metade do mundo é formado por elas
E a outra metade são os filhos delas
Então por que deixá-las com tanta dor?
Então por que recusar-lhes o amor?
Volta Jesus, vem tuas filhas salvar
Ensina aos homens que a elas devem amar
Volta Jesus, que o negócio deu errado
Ensina aos que ficaram como se foge do pecado

                                                  (Janderson Oliveira)

sábado, 4 de janeiro de 2025

Os meus ídolos...

Fotos de Leticia Ramalho (@letiramalhofoto)

Ainda bem que eu nasci no Nordeste. Este fato me leva ao entendimento que meus ídolos são outros, eles não estão no mainstream, mas ainda assim estão no ápice do que há de melhor na nossa cultura. 
Os meus ídolos agora são outros, eles estão espalhados pelas ruas do Bairro do Benfica, nas ladeiras do Bairro João Cabral e de Olinda. Eles estão no Alto do Cruzeiro, na Comunidade dos Souza e na Cachoeira da Onça. Estão ainda na Praia de Almofala, na cidade do Crato e nas históricas Igarassu e Ilha de Itamaracá.
Os meus ídolos são um mestre que vive o reisado na Bela Vista, os palhaços Mateu de Juazeiro, os irmãos que cantam e encantam em seu terreiro, uma mestra que se fez mestra tão cedo e um mestre que anda com seu bacamarte só pregando a paz. 
Os meus ídolos são toda uma família que samba coco em Arcoverde, uma preta velha que balança o ganzá em Custódia, uns caboclos que balançam suas plumas e jogam suas lanças em Araçoiaba.
Os meus ídolos são um gênio que balança maraca em Ibicuitaba, uma líder quilombola que bate pandeiro e canta coco no Sítio Vassourinhas, um jovem mestre de batuque com a voz rouca, um pai de santo com um sorriso contagiante, um mestre que veio de outras terras para formar caravana por aqui em Fortaleza.
Os meus ídolos são um rabequeiro que faz sua rabeca falar pelo Nordeste, uma macumbeira de São Luís do Maranhão, um mestre que mata e ressuscita o seu boi na Barra do Ceará, uma sertaneja que canta forró pelo interior afora.
Os meus ídolos são um encantado que foi cantar lá no céu, uma rainha cirandeira da beira da praia, uma senhora frágil que ainda canta coco com toda sua força, um mestre que entoa o baque forte do maracatu e um parceiro imponente que há anos toca sua alfaia aqui ao meu lado. 
Os meus ídolos são pais que cantam, filhos que dançam e netos que dormem no colo dançante de suas mães. Os meus ídolos calçam tamancos, pintam a cara de negro, usam saias rodadas, carregam suas espadas, batem seus tambores.
Eles não precisam de holofotes, fazem a festa e perpetuam a cultura ali mesmo, no seu cantinho, no seu espaço. Os meus ídolos são gente comum que não faz arte por dinheiro, mas que brinca com alegria e festeja na sua comunidade...